sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A Carta







Álvaro Neto segurava aquela pequena folha de caderno sem saber como a entregar. Suas linhas tortas, de caneta preta. Manchada na parte final, meio amassada, como se alguém tivesse pensado em jogar o papel fora.
Entrou na emergência uma jovem de aproximadamente vinte e oito anos. Seus olhos fechados, desligados de todo ambiente eram abertos pelos plantonistas que estavam naquele momento na sala de trauma, daquele pequeno hospital, daquela pequena cidade.
Toda atenção da equipe voltou-se a jovem, quando alguém que a acompanhava, disse:
__ Eu achei esse vidro de chumbinho do lado do corpo dela.
Ao monitor uma linha com um traçado irregular circundava todo o perímetro da parte central. No canto esquerdo cinquenta e cinco era o batimento cardíaco.
__ Saturação de sessenta__ disse alguém que configurava o monitor.
__ Isso não é bom__ disse alguém no fundo da sala.
A concentração de oxigênio estava baixando. As miofasciculações começavam a desenrolar pelo seu corpo, tremores como choques elétricos incontroláveis. A diarréia vinha confirmando.
__ Foi real mesmo!
Algumas pessoas entram nas salas de emergências com histórias de ingestão de chumbinho. Param equipes, fazendo-as perder tempo, quando na verdade o que a pessoa queria era chamar atenção. Não ingere nada do chumbinho.
Ela estava jogada no sofá. Pegou um copo de água que estava na cabeceira. Ligou a televisão.
__ O mercado financeiro em alta, especula-se...__ trocou de canal!
__ Chega essa semana no litoral, uma tempestade de grau cin..__ Preferiu desligar a televisão.
Subiu para o quarto. Quantas coisas passavam pela sua cabeça. Ela querendo desvencilhar-se de tudo que tanto a incomodava. Impossível. Pareciam vozes que não paravam de gritar um instante em sua mente.
“acabou...acabou”
Sozinha, tenta colocar a cabeça contra o travesseiro. Desliga as luzes do quarto. Tenta ligar o som e não consegue. Pega uma caneta, gira o corpo e rasga uma folha de um caderno velho que ficava sempre em baixo da cama.
“__ Você acumula esses cadernos velhos cheios de rabisques em baixo da cama para quê?”__ lembrou do que sua mãe sempre dizia quando via aquele velho caderno.
“Queridos pais. Não sei o que acontece comigo. Tenho tudo que poderia ter. Preciso me desligar de tudo isso.Não quero choro. Sorriam, agora sim estou feliz. Meu caminho traçado. Na verdade acordei foi hoje, talvez tivesse dormido de mal jeito, não sei. Mas o importante é que a vida é outra coisa do que isso aqui. Passou. Acabou. Regassou. Estrapolou.E ai de mim saber algo a mais do que eu sei. Possivelmente seria algo que deixasse em cabeceiras empoeirado como livros rasgados sem páginas finais.
Sou a estrela que está atrás do sol. Sou o artista sem arte. Sou o todo sem a parte
Acho que não sou ninguém. Deixei o cigarro aceso até a última ponta dele
Queimou o colchão e permaneci intacto até o momento de atender o telefone. Mudei de lado, não sei, não percebi. Só sei que morri. Só sei que não percebi. Só sei que deixei de saber. Só sei que morri quando passei a viver. Hoje encontro um reflexo de algo que poderiam deixar em um vidro completo por formol.Deixaram-me em uma caixa em baixo da pia da área da piscina. Quando abri, não era para mim.”
Álvaro Neto segurava aquela carta que estava dentro do bolso da calça daquela jovem. Tanta vida pela frente. Seus pais atordoados, não conseguiam ler a carta. Agarravam-se em um sinal de desespero.
__ E agora?__ dizia o pai.
O corpo foi levado para o IML. A carta foi junto com os pais. Álvaro Neto apenas não entendeu o sorriso no rosto daquela jovem no seu último segundo de vida.

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